Direitos Humanos
Fugitivos da injustiça
Sobrevivente do massacre de Corumbiara, há 16 anos, vive escondido. Entidades pedem nova investigação do caso
Por: João Peres
Publicado em 15/04/2011
Claudemir Gilberto Ramos, de 38 anos, há 16 tem a cabeça a prêmio. Pelo que se sabe, são R$ 50 mil por sua morte. "Para mim, já estou cumprindo a pena até demais, mesmo não estando na prisão. Só não me entreguei porque acho injusto. Se tivesse cometido crime, tinha que pagar pelo que fiz, mas não cometi." Claudemir considera-se um "foragido da injustiça". Desde o massacre de trabalhadores rurais em Corumbiara (RO), ele não sabe o que é endereço fixo, trabalho com registro em carteira ou convívio familiar. Condenado a oito anos e meio de reclusão, reclama um novo julgamento e uma efetiva apuração dos fatos ocorridos na madrugada de 9 de agosto de 1995, quando ao menos 12 sem-terra foram mortos por policiais militares e pistoleiros na Fazenda Santa Elina.
Em entrevista à Rede Brasil Atual e à TVT - a primeira desde aquela época -, Claudemir contou que não sabe quando foi a última vez que viu as filhas e a mãe. Na visão da Organização dos Estados Americanos (OEA), o episódio representa um erro cometido pelo Brasil devido às execuções realizadas por policiais e ao júri repleto de inconsistências.
Claudemir e seu colega Cícero Pereira Leite foram condenados com base em uma peça do Ministério Público Estadual que se baseou quase exclusivamente na investigação da Polícia Civil. Esta tomou como fundamento a apuração conduzida pela Polícia Militar, envolvida na operação. O lavrador diz que teme pela própria integridade física, por isso não se entregou em 2004, quando se esgotaram os recursos no Judiciário e ele passou a ser considerado foragido. "Tenho certeza que se me entregar e for pra Rondônia não demora muito eles (fazendeiros e policiais) me assassinam, porque o preconceito da Polícia Militar é grande pela morte do tenente", afirma. A referência é a um dos policiais que morreram no enfrentamento.
Relatório de 2004 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), integrante da OEA, concluiu que eram necessários novos esforços de investigação. "A falta de independência, autonomia e imparcialidade da PM (…) constitui violação do Estado brasileiro", defende o órgão. Nas palavras de Claudemir, não se pode pagar por um crime que não se cometeu: "O julgamento foi totalmente preconceituoso. Para mim, quem tinha que ser condenado eram os mandantes". Os fazendeiros apontados como responsáveis pelo aliciamento de uma milícia armada infiltrada entre policiais foram "impronunciados pela Justiça" - quer dizer, as acusações foram descartadas antes mesmo de haver julgamento.
Ocupação
A ocupação teve início em 15 de julho de 1995. Na tarde de 8 de agosto, quando havia uma ordem judicial para a remoção dos sem-terra, uma negociação definiu que em 72 horas haveria nova conversa sobre a saída, segundo Claudemir. Os acampados queriam garantias de que a área seria destinada à reforma agrária. "Até comemoramos entre os familiares, fizemos assembleia-geral, achando que tinha (sido) conquistado um passo da vitória porque a área já estava negociada", resume.
Na madrugada, no entanto, um grupo invadiu o local a balas. "A gente não pode ser hipócrita: tinha vigília no acampamento, até porque já tinha recebido vários ataques dos jagunços. Tinha arma de caça, ferramentas, só que (com) nossas armas era impossível combater o comando da polícia e dos jagunços." A legislação brasileira proíbe que ações de reintegração de posse sejam cumpridas durante a noite. Na troca de tiros, morreram três policiais e dois trabalhadores. "O que fiz foi me deitar no chão. Só ouvi os gritos das pessoas. Não tinha como fazer nada. Fiquei ali de bruços no chão. A única arma que eu tinha, que eu tava usando no dia da negociação, era uma máquina de foto, que no dia seguinte, na tortura, foi quebrada na minha cabeça."
Dominados os trabalhadores, a polícia deu início a uma série de agressões, torturas e execuções, documentadas em depoimentos e análises técnicas. Os adultos foram amarrados e jogados no chão; crianças eram obrigadas a pisoteá-los. Uma menina de 6 ou 7 anos recusou-se e acabou morta, segundo relatos. Claudemir conta que homens sofreram mutilação dos testículos e alguns mortos tiveram o pescoço cortado por motosserra. Os trabalhadores foram obrigados a comer terra misturada ao sangue. Nessa etapa, há oito execuções extrajudiciais comprovadas.
"Não tinha um comando, um chefe, mas eles me consideravam um chefe. Foi onde começou a tortura." Com a cabeça ferida por baionetas, ele desmaiou e, segundo testemunhas, foi jogado em um caminhão em que foram transportadas as vítimas. Claudemir lembra que acordou no necrotério. Lá, representantes da CUT e do PT já haviam se inteirado do massacre e pressionaram para que fosse preservada a vida dos feridos.
Em 2000, o Tribunal de Justiça de Rondônia agendou uma série de julgamentos sobre o caso. O Ministério Público defendeu a tese de que Claudemir e Cícero convenceram as mais de 2.000 pessoas que integravam as 500 famílias a ocupar Santa Elina. O promotor Elício de Almeida Silva defendeu, então, que os policiais eram culpados pela morte de 12 trabalhadores e deveriam ainda responder por cárcere privado, uma vez que teriam impedido a saída dos demais acampados.
"Não achava que ia ser condenado porque não tinham prova nenhuma. Só que no final do julgamento a surpresa foi grande. No corpo de jurados, para mim, tudo era ou fazendeiro, ou amigo dos fazendeiros", relata Claudemir. "Para mim, não tem prova, não devo esse crime. Estava lutando pelos direitos dos trabalhadores, e isso não é crime", sustenta.
O colega Cícero Pereira foi condenado a seis anos e dois meses por participação em um homicídio. Pela parte dos policiais, foram sentenciados o capitão Vitório Regis Mena Mendes e os soldados Daniel da Silva Furtado e Airton Ramos de Morais, mas todos ganharam direito a novo julgamento. Os demais policiais foram absolvidos, bem como Antenor Duarte, indicado por pistoleiros como mandante do massacre, tendo inclusive premiado com carros os comandantes da operação.
Movimentos de defesa dos direitos humanos remeteram o caso à OEA. Em 2004, a CIDH informou que os fatos ocorreram antes do ingresso do Brasil no sistema interamericano de Justiça e, portanto, o caso não poderia ser enviado à Corte. Mesmo assim, recomendou que o país deveria conduzir uma apuração imparcial e séria, determinando inclusive a participação de cada um dos envolvidos nos crimes, a começar pelos mandantes.
O Comitê Nacional de Solidariedade ao Movimento Camponês de Corumbiara apoia-se no relatório da CIDH para solicitar novo julgamento. "Estamos tentando despertar o interesse de nossa sociedade em torno de uma grande injustiça", argumenta o padre Leo Dolan, presidente do comitê. "Sem uma reforma agrária séria, os problemas do Brasil não serão resolvidos", insiste. "Durante anos muito sangue já foi derramado, muitas vidas perdidas, e até hoje não foi possível uma reforma agrária séria e eficaz."
VOMOS FAZER VALE A JUSTIÇA ....PELAS FAMILIA QUE PERDEU SEUS ENTES QUERIDOS E PELOS OS INOCENTES QUE SÃO ACUSADOS INJUSTAMEMTE.....
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