O casal José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, era o mais conhecido de todos. Eles lutavam desde 2008 contra a devastação florestal e a exploração ilegal de madeira no entorno da comunidade de Maçaranduba, sudeste do Pará. A propriedade do casal tinha 80% da mata preservada. Eles viviam há 24 anos na região e faziam parte da Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), uma organização não governamental criada por Chico Mendes, assassinado no Acre na década de 80 por também defender a floresta amazônica.
Em palestra em novembro, no evento TEDx Amazônia, Zé Cláudio, também conhecido como Zé Castanha, denunciava o desmate. “É um desastre para quem vive do extrativismo como eu, que sou castanheiro desde os 7 anos da idade, vivo da floresta e protejo ela de todo jeito. Por isso, vivo com a bala na cabeça, a qualquer hora”. “Eu posso estar aqui conversando com vocês e daqui a um mês vocês podem saber a notícia de que desapareci”, disse ele também naquela ocasião.
Em outro momento, também em novembro do ano passado, o extrativista e líder ambiental contou como era conviver dia após dia com as ameaças de morte. Segundo Zé Cláudio, sua mulher sofria muito com a situação, mas era uma defensora da natureza ainda mais ferrenha que ele. “Quando eu paro um madeireiro, é ela quem fotografa com a máquina digital. Por isso que eles (quem os ameaçava) dizem: ‘Não pode matar ele e deixar ela. Não pode matar ela e deixar ele. Tem que matar os dois’”, justificando a razão pela qual matariam os dois.
Por conta das ameaças que recebia e das dificuldades de continuar o trabalho extrativista no assentamento, Zé Cláudio falava inclusive em deixar o local.
Longa lista de assassinados e ameaçados
As cinco últimas vítimas deste ano aumentam o já longo rosário de assassinatos, de lideranças mais ou menos conhecidas, passando por Chico Mendes (1988) e Ir. Dorothy Stang (2005), para citar apenas os dois casos de maior repercussão. O fato de terem sido mortos em épocas diferentes indica também a permanência histórica dos conflitos de terra em nosso país.
A CPT desde 1985 divulga, anualmente, o relatório sobre os conflitos no campo. Segundo a entidade, de 2000 a 2010, 1.855 pessoas foram ameaçadas pelo menos uma vez. Desse total, 207 pessoas foram ameaçadas mais de uma vez, sendo que 42 acabaram sendo assassinadas e 30 chegaram a sofrer tentativa de assassinato. De 2000 a 2010, foram assassinadas 401 pessoas em todo o país.
Na lista de marcados para morrer estão, entre outros, um sindicalista, um agricultor e dois vereadores de Nova Ipixuna, no sudeste do Pará, e dez líderes comunitários da região amazonense de Lábrea.
Já em março passado, um grupo de 13 ativistas, entre as quais freira Henriqueta Cavalcante, da Comissão de Justiça e Paz, da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) estavam juradas de morte no Pará.
Os assassinatos ocorridos no Pará, fazem da região Norte a mais violenta do Brasil.
Governo dá sinais de reação
Diante das mortes, o governo federal começou a se mover, até porque os assassinatos, além do impacto interno, têm repercussões em nível internacional, chamuscando ainda mais a imagem do Brasil, especialmente em relação ao tratamento dado à Amazônia, com consequências econômicas.
Entre as iniciativas, estão as seguintes: a) Imediatamente, o governo começou a convocar diversos setores do governo, da sociedade civil (Comissão Pastoral da Terra – CPT) e os governadores, para discutir ações que devem ser tomadas com vistas a enfrentar a situação. Ao nível do governo, foram ou estão sendo mobilizados vários ministérios, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), a Força Nacional de Segurança Pública, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal.
No final de maio, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi convidada a participar de audiência com a ministra da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, para discutir as ameaças de morte contra lutadores e lutadoras da terra e sobre a violência no campo e os assassinatos da última semana. A CPT vem há anos denunciando ações desse tipo em todo o país. Seu relatório anual, Conflitos no Campo Brasil, publicado anualmente há 26 anos, traz denúncias tanto de pessoas assassinadas e áreas em conflito, quanto de pessoas que são ameaçadas em todo o país.
b) Além disso, a presidenta entrou pessoalmente na questão, criando um grupo de trabalho interministerial, a ser coordenado pelo secretário geral da Presidência, Gilberto Carvalho, para acompanhar a investigação dos assassinatos e acelerar ações de regularização fundiária e desenvolvimento sustentável nas áreas de conflito. A Operação Arco de Fogo, criada em 2008. Em reunião com vários ministros, convocada pela presidenta Dilma, o governo anunciou o envio de tropas à área do conflito.
c) Em outra ponta, o governo decidiu anunciar algumas medidas pontuas e burocráticas para deter a escalada de violência no campo. Retomou a Operação Arco de Fogo, criada em 2008 para coibir ações de extração ilegal de madeira na região da Amazônia e outros delitos ambientais. Está cogitando a criação de uma Área sob Limitação Administrativa Provisória (Alap), via decreto, que funcionaria como uma espécie de intervenção federal em áreas do Acre, Amazonas e Rondônia. O governo decidiu também dar prioridade à segurança de 30 agricultores e ambientalistas, que integram a lista de 1.813 pessoas ameaçadas por madeireiros entregue ao governo pela CPT. Esta lista poderá ser ampliada para 165 nomes.
Medidas tímidas e insuficientes
O sentimento generalizado é de que as medidas até agora anunciadas são tímidas e insuficientes, paliativas e até mesmo momentâneas, na medida em que não apontam para a implementação de políticas estruturais. No dizer do padre Ricardo Rezende, que trabalhou durante décadas na região e que também foi ameaçado de morte, o que o governo anunciou até agora são “medidas curativas”, mas, segundo ele, faltam “medidas preventivas” que ataquem “as raízes dos problemas: reforma agrária, sonegação de imposto, derrubada irregular de mata, grilagem de terra”.
Outro que cobra agilidade em políticas que ajam sobre as causas da violência na região é José Batista Afonso. “É preciso mais agilidade na demarcação de terras indígenas, regularização das terras de remanescentes de quilombos, das comunidades ribeirinhas, das áreas de proteção ambiental, além da fiscalização daquelas já existentes. Essa demarcação de territórios das comunidades da Amazônia é um passo no sentido de impor uma barreira de expansão dessas empresas ligadas ao grande capital, que estão na origem dessa violência. Então, é preciso atacar a questão de fundo, a reforma agrária também precisa ser prioridade”, insiste.
Lideranças sociais alertam também para a falta de impunidade reinante na região e que estaria na raiz de muita da violência. “Nos resta uma sensação de impunidade, de que este é um país sem lei”, afirma Mário Lúcio Reis, superintendente do Ibama do Amazonas. Também para dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia, fundador da CPT e do CIMI e que conhece muito bem a região, as mortes “não são fatos isolados”, mas que representam mais “um episódio da guerra no campo. É fruto da impunidade e da corrupção marcantes sobretudo no Pará, campeão em violência no campo, em desmatamento e queimadas”, dom Pedro Casaldáliga.
A lentidão e conivência do governo estariam por trás das mortes das lideranças sociais ocorridas nas últimas semanas, alerta o diretor do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), Atanagildo de Deus Matos. Para os bispos do Amapá e Pará, trata-se de mais uma amostra da “deficiência” do Estado brasileiro: “Diante desse triste e lamentável episódio, que escancara a deficiência do Estado Brasileiro em defender os filhos da terra que lutam em favor da vida, só nos resta exigir que esse crime não seja mais um impune”, diz nota da CNBB Regional Norte 2 (Amapá e Pará).
Em Nota Pública, a CPT responsabiliza o Estado pela morte do casal. “A Coordenação Nacional da CPT reafirma a responsabilidade do Estado por este crime. A vida das pessoas e os bens natureza nada valem se estes se interpuserem como obstáculo ao decantado “crescimento econômico”, defendido pelos sucessivos governos federais, pelos legisladores do Congresso Nacional que aprovam leis que promovem maior destruição do meio ambiente, e pelo judiciário sempre muito ágil em atender os reclamos da elite agrária, mas mais que lento para julgar os crimes contra os camponeses e camponesas e seus aliados. A certeza da impunidade alimenta a violência.”
Ampliando o leque, dom Pedro Casaldáliga a “omissão” do Estado em relação a “a três grandes dívidas: a reforma agrária, a política indigenista, a política doméstica e ecológica do consumo interno”.
Ausência ou omissão? No contexto de cobertura dos acontecimentos que envolvem o assassinato das lideranças camponesas e extrativistas, vale trazer a análise feita pelo Afonso Chagas, mestrando do PPG em Direito da Unisinos. Para ele, é incorreto afirmar que o Estado está ausente na região. “Afirmar a ausência do Estado, é uma visão minimalista, pelo fato de que o projeto de expansão agrícola da Amazônia foi muito bem ‘planejado’, tanto é que hoje, se tomarmos os estados da Amazônia legal, nunca o agronegócio encontrou tanto trânsito livre, principalmente o governamental, para se instituir e agir, não só em relação à ‘impunidade consentida’, mas sobretudo em polpudos financiamentos governamentais. A presença de ‘enclaves’ internacionais (Cargill, Monsanto, Bunge, Tractbel) e outros, não ocorreu sem um maciço implemento estatal, via BNDES.”
Mortes podem ter relação com a mudança do Código Florestal
Outra questão é saber se há uma relação direta ou indireta das mortes com a mudança do Código Florestal. Para o secretário Executivo do Ministério da Justiça, Luis Paulo Barreto, “não há nenhum dado, investigação apontando qualquer vinculação destes assassinatos com a tramitação do Código Florestal”, referindo-se à morte do casal José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo.
Entretanto, de acordo com o advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), José Batista Gonçalves Afonso, que está na região para acompanhar as investigações, há relação, sim. “A questão da regularização fundiária, aprovada em 2009, a questão da concessão de florestal, são leis que vem flexibilizando para que o capital avance sobre a floresta. Então, as leis têm favorecido isso e o Código Florestal vem nesse contexto”, afirma Batista Afonso.
O engenheiro florestal Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), lembra que com o esgotamento das áreas onde era possível retirar madeira e desmatar para fazer ocupações, as reservas, terras indígenas e assentamentos agroflorestais, transformam-se em alvos próximos para novos desmatamentos.
As investidas das madeireiras são sentidas inclusive no assentamento Praialta/Piranheira, onde morava e atuava o casal de extrativistas mortos. Ali, fiscais do Ibama e agentes da Polícia Federal comprovaram um cenário de devastação de espécies nobres de madeira, como angelim, ipê roxo, ipê amarelo e castanheira, árvore cujo corte é proibido por lei em razão de correr risco de extinção. Com o apoio de um helicóptero, eles localizaram extensas áreas de floresta desmatadas para a retirada ilegal de madeira. A derrubada é feita por empresas madeireiras e também por assentados.
Nestes locais, os próprios assentados não conseguem resistir às pressões para produzir carvão e cortar madeiras em áreas de proteção ambiental.
Bispos ameaçados
A violência não mira apenas nas lideranças camponesas e extrativistas. E não se produz exclusivamente pela questão agrária. Na última Assembleia geral da CNBB, três bispos do Pará ameaçados de morte, todos de origem estrangeira, passaram os dez dias sob proteção policial. O austríaco d. Erwin Kräutler, da prelazia do Xingu, o espanhol d. José Luís Azcona Hermoso, da prelazia de Marajó, e o italiano d. Flávio Giovenale, da diocese de Abaetetuba, foram constantemente vigiados por cinco agentes de segurança, que se revezavam dia e noite. As ameaças são decorrentes de denúncias de tráfico de mulheres, violência contra indígenas, tráfico de drogas e armas.
Violência contra indígenas
Na mesma assembleia geral, a Conferência Nacional dos Bispos Brasil (CNBB) afirmou, em nota de sua 49.ª Assembleia Geral, reunida em Aparecida, que 499 índios foram assassinados em conflitos de terra, no País, entre 2003 e 2010, e 748 estão presos atualmente “porque, diante de questões não resolvidas, são levados ao desespero e à agressividade”. Pelo menos 60 lideranças indígenas, segundo os bispos, respondem a processos em consequência de sua atuação em defesa de seus territórios.
“Temos observado que continua bastante recorrente o fato que, nos casos em que o intento de inviabilizar a demarcação de uma terra indígena não é atingido por meio de pressões políticas ou de ações judiciais, alguns segmentos político-econômicos apelam para a violência, promovem invasão das terras indígenas, atacam e assassinam as lideranças destes povos”, denuncia dom Erwin Kräutler, em pronunciamento feito ao episcopado brasileiro, reunido na 49ª assembleia geral. Este pronunciamento motivou e fundamentou a nota dos bispos em que declaram seu compromisso com a causa indígena.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado!A UNIÃO FAZ A FORÇA